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Espiritismo Literatura e Leitura 20/12/2004(00054)
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Medicina Darwiniana


Toda vez que um agente infeccioso invade o organismo, inicia uma guerra química, cujo desfecho depende de uma corrida armamentista mediada pela seleção natural




Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Só agora os biólogos, médicos e outros responsáveis pela saúde pública humana estão aprendendo uma lição que os militares já conheciam faz alguns séculos: a diferença entre tática e estratégia. Que você, mesmo tendo boas armas e boas táticas, pode prolongar ou mesmo perder uma guerra se sua estratégia for falha. É o que acontece com a guerra contra as doenças infecciosas. Bactérias adquirem resistência a antibióticos, mosquitos transmissores de doenças resistem a inseticidas, e as respostas em geral são "táticas" -usar um novo medicamento, um novo defensivo. Apropriadamente, a melhor "estratégia" está surgindo de uma renovada atenção ao princípio básico na vida na Terra: a evolução dos seres vivos pela seleção natural, conforme foi primeiro explicada pelo naturalista britânico Charles Robert Darwin (1809-1882) em torno da metade do século retrasado. A "medicina darwiniana" é um conceito recente, mas já conseguiu algumas vitórias nos seus primeiros combates, inclusive no Brasil. As palavras "tática" e "estratégia" vêm ambas do grego, "taktos" e "strategós". Tática era a arte de dispor as tropas e manobrá-las em um campo de batalha. Estratégia é uma derivação da palavra usada para definir quem comandava a batalha, o "estratego", ou general. Ou seja, tática é a arte e a ciência de vencer uma batalha, e estratégia é a maneira de ganhar a guerra. Ter bons tanques e bons aviões, bons soldados e bons pilotos que sabem usá-los para destruir um inimigo, pode não bastar para vencer a guerra, se o inimigo consegue usar suas forças taticamente inferiores para dar um golpe estratégico -por exemplo, cortando o fornecimento de combustível sem o qual tanques e aviões se tornam mera sucata. Metáforas militares para descrever doenças e a maneira de "combatê-las" horrorizaram a ensaísta americana de esquerda Susan Sontag, que achava que certas vítimas seriam discriminadas junto com suas doenças. Foi exagero dela. Pois a guerra química não existiu apenas entre forças especiais russas e terroristas tchetchenos, entre iraquianos e seus vários inimigos, ou entre os supostamente mais "civilizados" alemães, britânicos e franceses da Primeira Guerra Mundial. Toda vez que um agente infeccioso, ou patógeno, invade o organismo humano -seja ele um vírus, uma bactéria, um parasita unicelular-, inicia-se uma guerra química, cujo resultado vai depender de uma dinâmica corrida armamentista mediada pelo motor da evolução biológica, a seleção natural. Os organismos mais adaptados ao seu ambiente tendem a sobreviver e a transmitir suas características genéticas, enquanto outros se tornam extintos. Isso se chama "seleção natural". "Essa preservação de variantes favoráveis e a rejeição de variantes danosas eu chamo de Seleção Natural", escreveu Darwin em "A Origem das Espécies", livro clássico de 1859. Essa interação entre hospedeiro e parasita, ou "coevolução" entre ambos, é o ponto fundamental da evolução das doenças infecciosas. Curiosamente, uma idéia comum (e falsa) entre cientistas, sejam biólogos ou médicos, é que essa coevolução tenderia a criar uma coexistência pacífica entre hospedeiro e parasita.

"Ovos de ouro"
O argumento básico é que não faz sentido ao parasita matar o seu hospedeiro, eliminando a "galinha dos ovos de ouro". O ideal é que os dois permaneçam vivos, com o hospedeiro servindo de máquina de produção de novos parasitas.
"Poucas idéias foram tão entranhadas na literatura da medicina e da parasitologia quanto a idéia de que os parasitas devem evoluir para uma coexistência benigna com seus hospedeiros. Poucas idéias na ciência foram tão geralmente aceitas com tão pouca evidência", afirmou um dos pioneiros da "epidemiologia evolutiva", o pesquisador americano Paul Ewald.
Pois a realidade mostra que certos patógenos não evoluíram para se tornarem mais bonzinhos. Pois a virulência, isto é, o nível de dano que um parasita causa à sua vítima, também é ela própria objeto de evolução. Um parasita vai matar mais ou menos, mais rápido ou mais devagar, de acordo com a vantagem evolutiva que isso trouxer -ou seja, de acordo com a maior ou menor facilidade em passar seus genes aos descendentes.
"A seleção natural favorece características que aumentam a passagem dos genes que codificam essas características. Se a replicação mais rápida de um vírus dentro de uma pessoa leva à maior passagem dos genes que codificam essa replicação rápida, então o ritmo de replicação vai aumentar, mesmo se o crescimento mais rápido faz a pessoa ficar severamente doente, ou leva a uma diminuição no número total de vírus", diz Ewald. É por isso que uma epidemia do letal vírus africano Ebola em geral dura pouco tempo. O Ebola mata rapidamente, em questão de dias. Se um camponês pega o vírus, que vai matá-lo em quatro dias, ele vai ter poucas chances de disseminá-lo, pois vai morrer logo. Já um camponês que pega o vírus da Aids, o HIV, vai poder contaminar mais gente antes de morrer, pois o vírus vai demorar muito mais antes de matá-lo. "A reprodutibilidade é diferente da capacidade de infectar", como explica o médico brasileiro Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Massad fez uma palestra poucos dias atrás no Instituto de Biociências da USP justamente sobre o tema "medicina darwiniana".

Ciência exata
Calcular quantas pessoas podem ser infectadas a partir de um vetor da doença, qual a dinâmica de uma epidemia em uma determinada população e quais os possíveis efeitos de tratamento e de vacinação são tarefas que exigem um forte enfoque matemático. Um bom exemplo desse enfoque foi um estudo recente por pesquisadores brasileiros do grupo de Massad, publicado na revista científica internacional com o adequado nome "Bulletin of Mathematical Biology". Os quatro pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo -Massad, Marcelo Nascimento Burattini, Luís Fernandez Lopez e Francisco Antônio Bezerra Coutinho- descreveram a modelagem matemática da infecção pelo HIV em indivíduos e suas implicações na epidemia da doença. Por exemplo, a variação da carga de vírus no indivíduo ao longo da infecção pelo HIV influencia diretamente a probabilidade de transmissão. Uma das perguntas em discussão é essa: qual a fase da doença que responderia por mais novos casos? "Fizemos uma comparação entre o modelo anterior e o nosso; agora estamos refinando para criar melhores condições de prever o impacto dos tratamentos", afirma Burattini. Uma vez estabelecido isso, e a dinâmica de transmissão, pode-se então simular o impacto de diferentes estratégias de controle -preventivas, ou o tipo de tratamento- na evolução da epidemia. Uma das idéias que dão suporte aos novos estudos é a do "vetor cultural". Do mesmo modo como um mosquito serve de vetor/transmissor de um patógeno, existem outras forças envolvidas na propagação das doenças infecciosas.

Enfermeiros-mosquito
Por exemplo, como lembrou Ewald, os próprios médicos e enfermeiros podem ser uma espécie de "mosquito", levando patógenos de leito em leito dentro do hospital. Infecções hospitalares são notoriamente mais letais.
Os pesquisadores da USP fizeram um estudo clássico na década de 90 em Santos (SP) sobre a transmissão da Aids através de agulhas infectadas de usuários de drogas injetáveis.
No modelo matemático, de 1994, eles compararam as agulhas das seringas ao papel dos mosquitos, mostrando em seguida a grande taxa de transmissão da doença por esses vetores. "A essência do mecanismo de transmissão é a mesma", segundo Burattini.
"A agulha da seringa faz o que faz o mosquito", diz Massad. Um dos resultados foi mostrar, como ele lembra, "que a troca de seringas é melhor do que a simples distribuição". A variável de grande impacto era justamente a agulha infectada.
A matemática explica os motivos. As fórmulas, relativamente simples em termos matemáticos, mas difíceis de entender para leigos, procuram levar em conta a relação entre os diferentes fatores de disseminação de uma doença.
Quantos drogados se picam com a mesma agulha? Em que fase da infeção eles estão? Ou, no caso das doenças transmitidas por mosquitos, quantos deles existem, a que horas eles picam, quantas outras pessoas eles picam no seu tempo de vida?
Na Nigéria, por exemplo, notou-se que cada caso de malária tem o potencial de produzir mil outros. Grande parte disso é resultado de o principal mosquito vetor na África, o Anopheles gambiae, ser extremamente eficiente -vive muito e pica muito, comparado com outros mosquitos transmissores do mesmo gênero.
Saber portanto quantas picadas dá um mosquito por hora, ou quantas relações sexuais um sujeito tem por semana, com ou sem camisinha, não são apenas curiosidades estatísticas.
Na verdade, são dados vitais para criar estratégias novas para combater alguns dos piores inimigos da humanidade, as doenças infecciosas.

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