Espiritismo Literatura e Leitura 27/11/2005(00506)
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A "Ciência" da Criação e o Dilúvio de Noé
por Lenny Flank
© 1995

De acordo com a genealogia do Gênesis, o Dilúvio Bíblico aconteceu quando Noé tinha 600 anos de idade, o que, assumindo que a terra fora criada em 4004 a.C., posiciona o Dilúvio em cerca de 2400 a.C. (aproximadamente ao mesmo tempo em que estavam sendo construídas as Pirâmides do Egito). Ainda assim, nenhum registro histórico dessa época, nem dos egípcios, nem dos fenícios, nem dos gregos, nem de nenhum outra cultura menciona tal evento (depois de tudo, dificilmente eles deixariam de mencionar). Os registros históricos de civilizações tão antigas como a da China ou os habitantes do Vale do Indo não mostram nenhum período de tempo em que estas civilizações houvessem sido destruídas subitamente por uma inundação global, para serem repovoadas de forma lenta posteriormente. Simplesmente não há nenhum evidência de nenhum tipo, seja da arqueologia, geologia ou história, que indique uma inundação de nível global que tenha destruído todas as pessoas exceto oito.

Por muitas razões, o relato de Noé dado no livro do Gênesis, simplesmente não pode ser verdadeiro nem literal nem historicamente. Um problema óbvio resulta da própria construção da Arca. De acordo com a Bíblia, a Arca tinha dimensões de 300 cúbitos por 50 cúbitos por 30 cúbitos de altura (convertendo em aproximadamente em 135 por 22,5 por 13,5 metros) Isto é mais de quatro vezes o tamanho de qualquer navio de madeira construído por qualquer civilização que existia no segundo milênio antes de Cristo. Os barcos de madeira de grandes dimensões devem suportar esforços severos em mar aberto, e os métodos técnicos para lidar com isso simplesmente não existiam até então. Não foi até o ano de 1900, uns 4000 anos depois de Noé e sua Arca, que começaram a construir navios de madeira que apenas remotamente se aproximavam do suposto tamanho da Arca. Estes eram as escunas de nove mastros de 90 metros de comprimento (uns 45 metros mais curto que a Arca). Eram tão grandes que ondulavam visivelmente com as ondas, e exigiam grandes cintas diagonais de aço para evitar que se partissem ao meio. Mesmo com esses reforços, os esforços causavam aberturas no recobrimento do casco, as quais vazavam água continuamente e tinham que ser drenadas continuamente com uma bomba. Esses navios só podiam ser usados em águas costeiras porque não podiam sobreviver em mar aberto. A insegurança desses navios para travessias marítimas foi a principal razão pela qual as forças navais do mundo passaram aos barcos de aço antes da Primeira Guerra Mundial. Lembre-se que a Arca tinha que sobreviver em mar aberto durante uma feroz inundação catastrófica.

Aparentemente, os criacionistas querem nos fazer crer que um Noé de 600 anos de idade foi capaz de construir um barco de madeira 45 metros maior que o maior navio jamais construído, e foi capaz de resolver, ele mesmo, todo o projeto, construção e problemas materiais com os quais, as maiores marinhas do mundo, 4000 anos mais tarde, não foram capazes de resolver. Depois do Dilúvio, Noé aparentemente esqueceu como havia resolvido estes problemas -- nenhum outro navio de tamanho similar foi construído pelos quarenta séculos seguintes.

Agora que construímos a Arca, como Noé iria ocupá-la? Havia sido ordenado a ele levar sete de cada besta "limpa" e dois de cada besta "não limpa". Mas não havia espaço suficiente em seu barco -- e havia uma grande quantidade de animais que necessitavam ser levados se todas as espécies fósseis também tivessem que ser consideradas. É óbvio que mesmo a Arca de Noé com seus 145 metros simplesmente não teria espaço suficiente para levar dois indivíduos de cada espécie animal, tanto das espécies vivas como das fósseis.

Por conseguinte, os criacionistas argumentam que Noé não tinha que pegar dois de cada espécie de animal -- apenas dois de cada "Tipo". Após o Dilúvio, os "Tipos" variariam e produziriam todas as novas espécies que vemos hoje em dia.

"Se podia dizer para qualquer propósito prático que, afinal de contas, não havia necessidade de ter mais de 35.000 animais vertebrados individuais na Arca. O número total de que se conhece como espécies de mamíferos, aves, répteis e anfíbios listadas por Mayr é de 17.600, porém indubitavelmente o número de "Tipos" originais era menor que isto." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 69)

Assim, Noé não tinha que abrir espaço em seu barco para um par de leões, um par de tigres, um par de leopardos, etc -- tudo o que ele precisava era um par de animais "Tipo gato". (Ignoraremos por hora todos os problemas que encontramos com a idéia criacionista de "Tipos criados".)

Porém ainda há mais problemas. Whitcomb e Morris haviam assumido que os animais aquáticos, sendo aquáticos, não corriam risco pelo Dilúvio e não necessitavam de espaço na Arca. Porém se caiu água doce na terra suficiente para cobri-la, os oceanos estariam tão diluídos que nenhum organismo marinho poderia ter sobrevivido neles, uma vez que os organismos marinhos se incham, estouram e morrem rapidamente quando são postos em água doce. Sem problema, dizem os criacionistas; as "fontes do abismo" devem ter expulsado sal suficiente para manter a salinidade alta o suficiente para que os organismos marinhos sobrevivessem.

Mas então o que aconteceu com os organismos de água doce? Eles não poderiam sobreviver em água salgada. Alguns criacionistas têm tratado de fazer o mesmo nas duas situações, argumentando que deve ter havido bolsas de água salgada e de água doce que de alguma forma não se misturaram. Como isto pode ter ocorrido enquanto as turbulentas águas do Dilúvio estavam destruindo a superfície da terra, é algo que eles não explicam. No lugar, Whitcomb e Morris especulam, "Todos os peixes devem ser adaptáveis ao menos a uma certa variação de salinidade, assim não é irracional que alguns indivíduos de cada tipo seriam capazes de sobreviver a mescla gradual das águas, e a troca gradual de salinidade durante e após o Dilúvio." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 387)

Deixando de lado por um momento a pergunta de como um dilúvio de quarenta dias que cobriu a totalidade da superfície da terra foi "gradual", as especulações de Whitcomb e Morris podem ser refutadas por qualquer um que tenha um aquário de água doce e outro de água salgada. Simplesmente adicione uma colherinha de sal ao tanque de água doce e um copo de água doce no tanque de água salgada todas as manhãs, para subir e baixar respectivamente a salinidade. Continue com isto por um mês, e veja o que acontece com seus peixes com esta "mescla gradual". Não parece haver outra alternativa senão que Noé tivesse tido alguns aquários espantosamente grandes em seu barco, para manter vivos ao menos alguns dos organismos aquáticos durante o Dilúvio.

Porém ainda não resolvemos os problemas de espaço abordo da Arca. Noé ainda teria que alimentar todos estes diferentes "Tipos" por um período de mais de um ano. Os grandes herbívoros, como os elefantes, consumem cerca de 160 kg de vegetação por dia. Os grandes carnívoros, como o leão, comem cerca de 40 kg de carne a cada semana. Noé não apenas devia abrir espaço suficiente em seu barco para armazenar toda esta comida, mas também devia encontrar alguma forma de mantê-la fresca e consumível por mais de um ano -- sem refrigeração. Os criacionistas não têm explicação de como foi que isto ocorreu.

Tampouco são capazes de explicar o que comiam os diversos animais depois que saíram da Arca. De acordo com os criacionistas havia apenas dois "Tipo gato" e dois "Tipo antílope" que saíram da Arca. É de se supor que os Tipo Gato estivessem terrivelmente famintos após sua viagem. Porém se eles imediatamente tivessem achado e almoçassem os "Tipo Antílope", isto teria sido o fim desse "Tipo" e não teríamos hoje em dia gazelas, antílopes e cervos. Vamos supor que os Tipo Gato comeram, não os dois Arca, mas a cria dos dois. Isto haveria mantido o nosso par de Tipo Gatos saciados e contentes cerca de uma semana. E o que acontece depois? A menos que assumamos que os Tipos Antílope eram tão prolíficos a ponto de produzir cerca de um nascimento por semana, devemos assumir que os Tipo Gato teriam que comer a totalidade dos Tipo Antílope, ou levar seu próprio tipo a extinção por inanição. O mesmo aconteceu com o Tipo Serpente e o Tipo Rã, o Tipo Tamanduá e o tipo Formiga, e com o tipo Coruja e o tipo Rato.

Obviamente os criacionistas não têm nem idéia a respeito das relações ecológicas entre predadores e presas. Entretanto, já que eles não conseguem admitir que a totalidade da história do Dilúvio é impossível por causa de todos estes problemas insolúveis na reunião e cuidados dos animais, eles devem apresentar alguma explicação. E o fazem, porém, outra vez, apelando para suas convicções religiosas:

"Que Deus interveio numa forma sobrenatural para reunir os animais na Arca e para mantê-los sobre controle durante o ano do Dilúvio está afirmado explicitamente no texto da Escritura." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 76)

"É porque a própria Bíblia nos ensina essas coisas que estamos perfeitamente justificados em apelar ao poder de Deus, seja que Ele tenha usado métodos tanto acessíveis como inacessíveis ao nosso conhecimento científico, para reunir os dois de cada tipo de animal dentro da Arca, e para o cuidado e a preservação daqueles animais na Arca durante os 371 dias do Dilúvio." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 79)


A base religiosa da "ciência" da criação não podia se fazer mais explicita que nestas duas passagens.

Mas os criacionistas são forçados a invocar a deidade outra vez, quando tentam explicar de onde veio a água do Dilúvio. Uma inundação suficiente para cobrir a totalidade da terra teria exigido cerca de 4,4 bilhões km³ de água. A quantidade total de vapor d'água presente na atmosfera nem sequer começaria a produzir toda esta água, e nenhuma fonte subterrânea conhecida é tampouco o suficientemente grande. Outra vez, os criacionistas se voltam para a Bíblia por sua "ciência": "Se aceitamos o testemunho bíblico com respeito a um firmamento de água antediluviano (Gênesis 1:6-8, 7:11, 8:2, II Pedro 3:5-7), conseguimos uma fonte adequada para as águas do Dilúvio." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 77) Gênesis 1:6-8 diz: "E Deus disse, haja um firmamento entre as águas, e que divida as águas das águas. E Deus fez o firmamento, e dividiu as águas que estavam abaixo do firmamento das águas que estavam acima do firmamento, e foi assim. E Deus chamou o firmamento Céu. E foi tarde e foi manhã do segundo dia."

Assim, os criacionistas apresentam, como sua "evidência científica" para a fonte das águas do Dilúvio, a descrição bíblica de um "firmamento de vapor" prévio ao Dilúvio, que rodeava a terra. Morris disse, "Se houve no começo, um vasto manto termal de vapor d'água em algum lugar sobre a troposfera, então não apenas o clima seria afetado, como também seria uma fonte adequada para explicar as águas atmosféricas necessárias para o Dilúvio". (Morris, Scientific Creationism, 1974, p. 124)

Há apenas um problema com a teoria do "firmamento de vapor" dos criacionistas -- não há a menor evidência científica que indique que tal firmamento já existiu alguma vez (exceto a descrição do Gênesis), e há boas razões para duvidar que pudesse ter existido. Os criacionistas são incapazes de oferecer qualquer explicação de como um firmamento assim era capaz de se manter durante o período anterior ao Dilúvio, ou como foi liberado para produzir as próprias águas do Dilúvio. Posto que o vapor d'água tende a se mover desde áreas de alta concentração até áreas de baixa concentração, seria impossível que existissem um cinturão atmosférico de vapor d'água, a menos que se impedisse sua difusão por meio de uma barreira impermeável. Também, uma camada de vapor d'água assim seria destruída por células de convecção, produzidas por ar quente ascendente do equador que é substituído por ar polar mais frio. Outro problema que surgiria tem a ver com a pressão atmosférica. A pressão atmosférica é causada pelo peso dos gases da atmosfera pressionando sobre a superfície da terra. O vapor d'água é muito pesado, e uma camada de vapor como a que postulam os criacionistas produziria uma pressão atmosférica ao nível do mar de umas 900 atmosferas, aproximadamente igual a pressão que há no mar a 8.800 metros de profundidade. Noé e sua Arca (e qualquer coisa que houvesse na terra) teriam sido esmagados pelas exorbitantes pressões atmosféricas antes que pudessem navegar.

A afirmação criacionista de que as águas do Dilúvio foram produzidas pela condensação desta camada de vapor apresenta ainda outro problema. Sempre que o vapor d'água se condensa para formar água líquida, libera calor. E a condensação de uma quantidade de vapor d'água suficiente para produzir uma inundação global teria liberado uma enorme quantidade de energia calorífica. Como Arthur Strahler assinala, "Os cálculos mostram que o calor liberado por uma camada como a descrita por Morris teria elevado a temperatura atmosférica em mais de 3500°C, fervendo o oceano e a Arca." (Strahler, 1987, p. 197) Os criacionistas, incapazes de explicar qualquer um desses problemas, apenas podem concluir: "É obvio que a abertura das 'comportas do céu' para que 'as águas que estavam sobre o firmamento' caíssem sobre a terra, e a ruptura de 'todas as fontes do grande abismo' foram atos sobrenaturais de Deus." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 76)

Outra vez, as bases religiosas da "ciência" da criação ficam dolorosamente patentes. Os criacionistas não têm nenhuma explicação científica qualquer que seja para os eventos do Dilúvio, e mais uma vez devem apelar abertamente ao "poder de Deus" para manter sua "ciência" flutuante. Isso não é surpreendente posto que, como reconhecem claramente os criacionistas, sua "geologia do dilúvio" não é nada mais que seu intento de reconciliar uma leitura literal do Gênesis com a evidência geológica. E perante a qualquer conflito entre a Bíblia e esta evidência, é a Bíblia que tem a prioridade:

"Ou o registro bíblico do Dilúvio é falso e deve ser rejeitado, ou é o sistema da geologia história, que parece tê-lo desacreditado, que está errado e deve ser mudado. A última alternativa parece ser a única que um cristão instruído bíblica e cientificamente pode aceitar honestamente." (Whitcomb e Morris, 1961, p. 118)

"Quando alguém mantêm esta alta apreciação da escritura, necessariamente deve aceitar o Gênesis por seu próprio valor. Isto não significa apenas que houve literalmente seis dias de Criação, mas que também não houve eras geológicas ... As escrituras ensinam clara e enfaticamente que houve um Dilúvio global e cataclísmico.. Isto só pode significar que o Dilúvio e seus efeitos posteriores devem explicar a maioria das evidências fósseis e estratigráficas que se encontram comumente na crosta terrestre." (Morris, Back to Genesis, Agosto de 1995)

"O registro bíblico tem proporcionado uma clara descrição das causas, natureza e resultados do verdadeiro catastrofismo, o Dilúvio Universal ... Não podemos verificá-lo experimentalmente, é claro, não mais do que podem sê-lo qualquer das outras teorias catastrofistas, mas não necessitamos verificação experimental: Deus a registrou em Sua Palavra, e isso deveria ser suficiente." (Morris, 1970, p. 30)



A "geologia da inundação" criacionista não é nada mais e nada menos que a doutrina bíblica literalista. Não tem mais valor científico que o resto da "ciência" da criação, e não tem mais lugar nas aulas de ciências das escolas públicas.



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