http://urs.bira.nom.br

Espiritismo Literatura e Leitura 02/12/2004(00040)
Imprimir esta página Anterior Índice Próxima

Filosofia Espírita da Educação
um projecto educativo para o Homem

Francisco Xavier de Almeida Marques*

Revista de Espiritismo nr. 26, 1995

O sentido da filosofia espírita da educação encontramo-lo no homem. Este é o seu objecto, a sua única finalidade. Considerá-la a filosofia primeira do corpo doutrinário do espiritismo é o primeiro passo para compreender a sua missão no mundo: formar homens de bem.

1. Algumas notas etimológicas
Etimologicamente, o vocábulo filosofia significa “amor da sabedoria”, o seu objecto de estudo é a procura da verdade; educação designa o acto ou efeito de educar, este, por sua vez, significa “aperfeiçoamento (desenvolvimento) das faculdades (físicas e morais) do homem”; um segundo sentido vai buscar-se ao vocábulo etimologicamente aparentado com ele, do latim educere (Edução), significa “extrair” e decorre das mais recentes reflexões sobre a educação (recuperação dos princípios platónicos da educação) e da recusa em significar “educação” como adução (introduzir), mas antes como um despertar livre e consciente do ser para o mundo, para os valores e para a necessidade da sua autoformação (para Sócrates e Platão a virtude não pode ser ensinada).

No fundo, duas ordens de razões implicam na procura evidente de delimitar o sentido da educação, a saber, se ela é tão somente instrução - adução sem mais de matérias e conhecimentos exteriores (erudição) - ou se, pelas suas implicações globais, de natureza moral e psicossocial, a educação é mais do que instrução e visa antes a apropriação de um saber autêntico feito de experiência, numa livre adesão da consciência individual empenhada no seu autodesenvolvimento na procura de um sentido e de uma definição do seu lugar no mundo em todos os domínios da sua existência.

Reflectindo na etimologia apresentada encontramos imediatamente palavras cujo significado conceptual está no centro da reflexão espírita: “aperfeiçoamento”, “desenvolvimento” e “extrair” podem, com efeito, ser abundantemente significadas na teoria espírita do conhecimento. Sendo o espiritismo um defensor intransigente da pluralidade das existências, da perfectibilidade moral e intelectual do ser, a partir do postulado de que o homem é hoje o somatório das suas vidas pretéritas em caminho para a perfeição, num perpétuo e contínuo desenvolvimento das suas faculdades integrais, compreende-se o porquê de fazer seus, e, sobretudo, da sua filosofia da educação, tais conceitos.

Mas a identificação fica completa se considerarmos mais explicitamente que o objecto desta filosofia é o homem, e que é o homem considerado na sua unidade tridimensional existencial, isto é, como espírito, perispírito e corpo.

Até aqui temos definido o objecto da filosofia espírita da educação - o homem integral - e uma finalidade: a realização da sua máxima perfectibilidade possível em todos os domínios da sua existência intelectual e moral.

Mas, se considerarmos que o conceito de perfeição está numa relação de identidade com o conceito de felicidade, então o quadro completa-se sendo possível reflectir num estatuto geral desta filosofia da educação, cuja originalidade está na profundidade e oportunidade das suas questões, na sua visão holística do homem e do universo e na pertinência das suas propostas de revisibilidade dos princípios orientadores das filosofias, metodologias e ciências da educação actuais.

Filosofia espírita da educação será, assim, o amor pelo saber que procura a verdade do ser multidimensional que é o homem, amor pela procura das condições ideais da sua perfectibilidade possível, realizável nos mais diversos domínios da sua vida como homem encarnado e na sua existência como espírito eterno e imortal.

2. Kardec pedagogo: «O Livro dos Espíritos» - um tratado de filosofia da educação
A finalidade educativa do espiritismo começa logo na escolha de Hippolyte Léon Denizard Rivail, de pseudónimo Allan Kardec, para ser o codificador do espiritismo. Pedagogo de nomeada em França, apresentou trabalhos diversos no domínio da educação, incluindo reformas do sistema de ensino em França, a institutos e universidades (entre as quais a Sorbonne) do seu país. Hippolyte Léon foi discípulo de Pestalozzi, leccionando em Yverdum um dos centros de educação mais avançados em todo o mundo no século XIX, precursor das pedagogias activas (pedagogias que põem a tónica na educação dinâmica do indivíduo, privilegiando a sua auto-educação (educação como edução), corrente tão em voga nos nossos dias.

Kardec procurou sempre imprimir uma forma didáctica à exposição dos assuntos abordados nas obras da codificação espírita, assuntos cuja complexidade invoca as mais altas questões de filosofia, de ciência e de moral; é, porém, em «O Livro dos Espíritos» que essa didáctica pode melhor ser encontrada e compreendida.

O resultado foi espantoso. Na didáctica apresentada salientam-se a forma de diálogo em que as obras, sobretudo «O Livro dos Espíritos», são apresentadas, método tradicional em filosofia, originariamente adoptado por Platão para descrever os diálogos socráticos e platónicos. O método dialéctico, com modificações apropriadas à natureza da obra que consiste na colocação de questões aos espíritos, questões que utilizam ora o método dedutivo (do geral para o particular) ora o método indutivo (do particular para o geral), procura substituir as perguntas que os mais diversos leitores, de extractos intelectuais diversos, fariam em idêntica situação, levando-os a reflectir em problemas, por exemplo, de metafísica, de ontologia, de psicologia ou de biologia, com relativa facilidade, apelando somente ao exercício da razão natural e à lógica mais elementar e, maieuticamente (maiêutica: método usado por Sócrates para levar os opositores num diálogo a atingir a solução do problema em análise a partir de si mesmos), extrair dos arquivos extrafísicos da mente os elementos indispensáveis à valorização do conhecimento da vida imortal, da justiça divina e da suprema sabedoria das leis que regem o Universo e todos os seres que nele habitam.

Em consequência disso, é em «O Livro dos Espíritos» que podemos não só encontrar o exemplo de uma obra didáctica como também encontrar todos os princípos que fazem dele um tratado de filosofia da educação. Por ele acedemos a uma viagem inesquecível à Ciência do Infinito partindo da existência de Deus para a definição e caracterização da sua obra nos domínios da existência do espírito e da matéria, caracterizando as leis morais e físicas que regem respectivamente todas as coisas. A explicação da origem do sofrimento, do sentido autêntico da felicidade, o destino do homem, a sua origem e razão de ser, eis em traços largos a paisagem que se divisa ao percorrê-lo. Mas em que sentido dizemos que é um tratado de filosofia da educação? Apenas no sentido em que ao mergulhar nele depara-se com todas as respostas às grandes interrogações do homem, constituindo essas um guia prático que além de fazer o leitor divisar mais longe a sua própria essência enquanto ser eterno e imortal, reconduz a sua visão superficial das coisas para uma visão holística e integral do Universo e de si próprio, demonstrando-lhe quais os princípios fundamentais de uma conduta moral ideal que o conduzam à felicidade real.

A espaços são integrados os conhecimentos teóricos, mesmo os de maior alcance, com os elementos práticos que permitem a sua compreensão e a montagem livre e consciente de estratégias que favoreçam uma reorganização da existência no sentido de melhorar a personalidade, dominar as más inclinações e tudo fazer para ser útil e agradável ao próximo. Tudo isto devidamente organizado, disposto de tal maneira que ao fazer-se a experiência de ler e meditar «O Livro dos Espíritos» e, de um modo mais abrangente, as restantes obras da codificação, sem nunca ser constrangido a nada, é-se levado pela sua lógica e sólida argumentação a rever os fundamentos da vida, encontrando aí a oportunidade de se questionar se é de facto essa, a conduta actual, a mais adequada às necessidades integrais do espírito.

Responsabilização, consciencialização, desenvolvimento para um aperfeiçoamento das faculdades do ser eis o que visa «O Livro dos Espíritos» e faz dele um tratado de filosofia da educação, alicerçado num método que assenta inteiramente na edução dos elementos arquivados na mnemónica extrafísica do ser onde este vai buscar as energias, a necessidade e a decisão para a reorientação, sempre que for caso disso, da existência. Neste sentido a filosofia espírita da educação compreende uma teoria e um método prático, duas exigências fundamentais para que se constitua como uma pedagogia.

Já em 1828 Rivail tinha defendido no seu “Plan proposé pour l’amelioration de l’education publique” de França a educação como “uma ciência bem caracterizada”, num século onde a educação estava longe de ser considerada como tal. Para isso, e considerando que a diferença entre pedagogia e educação está no âmbito mais científico e restrito da primeira sobre a segunda, mais ampla e abrangente, «O Livro dos Espíritos» considera fundamental a observação e o estudo do homem, o conhecimento de si mesmo, para encontrar as condições adequadas a uma prática pedagógica que faça jus aos dois preceitos fundamentais da pedagogia e filosofia da educação espíritas - “Amai-vos e instruí-vos”.

A possibilidade de uma ciência da educação está na forma como se chegar a conhecer as leis internas da vida moral e intelectual do seu objecto de estudo - o homem. A tarefa da pedagogia espírita será a de “combater as más tendências, e ela o fará de maneira eficiente quando se basear no estudo aprofundado da natureza moral do homem. Pelo conhecimento das leis que regem essa natureza moral chegar-se-á a modificá-la, como se modificam a inteligência pela instrução e as condições físicas pela higiene”(Cf. 872), acrescenta Kardec.

Kershensteiner e o princípio de “uma educação axiológica”, Dewey e a educação tendo em vista “um princípio de acção útil”, Carl Rogers e o princípio do “ser pessoa”, cada um a seu modo reconhece o valor desta introprospecção individual, da intuição e dos princípios da autonomia e da liberdade, do respeito pelo ser seja qual for o seu estado de adiantamento moral, da responsabilidade com que este deve escolher em liberdade a modalidade da sua existência, princípios estes já defendidos há 150 anos pela pedagogia espírita e que estes expoentes da psicologia social, da educação e da filosofia reclamam para o nosso século em matéria de objectivos gerais da educação.

3. A filosofia primeira
Partindo da ideia várias vezes referida por Allan Kardec na sua obra, de que a finalidade primeira do espiritismo é "formar homens de bem", tomamos como princípio fundamental desta a sua significabilidade ética e educativa. Pelo facto de se invocar para a filosofia espírita a finalidade formativa, não se deve ignorar que ela é antes de mais performativa, justamente porque a sua ética não se impõe como uma ética da salvação, ao contrário das éticas salvíficas herdadas do fundo religioso do período medieval, mas como uma ética do desenvolvimento progressivo e natural do ser, num despertar contínuo até atingir a plenitude da consciência no processo evolutivo. Por isso ela não é impositiva no sentido de impor condições a partir das quais exclusivamente o homem possa "salvar a sua alma".

A concepção positiva de homem que o espiritismo preconiza não admite que o actor principal da educação, o educando eterno e imortal que é o espírito, seja moldado a uma imagem paradigmática que preexista inicialmente. Não existe um Adão originário que os homens tenham de copiar antes da queda original. Não se trata de um retorno a, mas de um desenvolver progressivo das forças da alma no trabalho das vidas sucessivas até atingir a compreensão plena da sua situação como existente. A criação do espírito simples e ignorante até à perfeição diz-nos que ele e só ele deve ser o actor da sua formação, extraindo das suas conquistas e derrotas a experiência necessária para vencer os obstáculos da evolução até se tornar realmente livre, perfeito e feliz.

Justamente por isso deve considerar-se a filosofia espírita da educação como uma filosofia primeira no corpo doutrinário do espiritismo. Nenhuma outra finalidade resolve tão bem o sentido do espiritismo para o homem do que a educação. Em vez de formar homens de bem diríamos mais coerentemente "educar homens para o bem", ajudá-los a compenetrar-se da sua imortalidade, da responsabilidade que implica cada vida na Terra, da importância do agir em conformidade com a justiça, com o amor e com a caridade.

4. Um projecto educativo para o homem
O "mal-estar na civilização", tema que deu título a uma obra importante de Sigmund Freud (criador da psicanálise), tem a sua origem, segundo «O Livro dos Espíritos», na predominância de uma paixão exacerbada da alma humana: o egoísmo. Diz o «O L. E.» (917) que "o egoísmo é a imperfeição mais difícil de desenraizar, porque se liga à influência da matéria, da qual o homem, ainda muito próximo da sua origem, não consegue libertar-se"; ele é incompatível com a justiça, o amor e a caridade, neutralizando estas qualidades indispensáveis a um carácter bem formado.

No estado actual da civilização os efeitos do egoísmo são bem visíveis, como aliás sempre o foram no passado: miséria, má distribuição das riquezas, injustiça, lei da força ao invés da força da lei, desesperação e infelicidade. Violência, crueldade e perversão são os fenómenos dominantes no carácter humano. Não significa que o senso moral não exista nos homens, todavia não está suficientemente desenvolvido; Kardec acrescenta (comentário à questão 754): "a superexcitação dos instintos materiais asfixia, por assim dizer, o senso moral, como o desenvolvimento deste arrefece pouco a pouco as faculdades puramente animais".

O espiritismo reconhece que as civilizações, como todas as coisas, têm os seu graus de adiantamento. Por isso a civilização que ora vivemos, embora mais complexa e moralmente mais adiantada do que outras no passado, ainda corresponde a um estado de transição e, por conseguinte, como civilização transitória, incompleta, engendra males especiais, cuja solução só o progresso moral da humanidade poderá encontrar.

Em todo o caso, as civilizações, reflexo das organizações sociais que as compõem, adquirem uma autonomia perigosa como macro-estruturas que limitam a capacidade transformadora dos homens. Todos os seres nascem já inseridos numa estrutura, uma estrutura de hábitos, costumes, preconceitos, normas. São poucos os que nelas educados conseguem libertar-se e corrigir o que não é compatível com o seu progresso moral, com o progresso moral da sociedade e da civilização. Por isso dizia Rosseau (filósofo e pensador político francês) que "o homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe". Não queremos recuperar aqui o mito do "bom selvagem", mas, na verdade, as estruturas espartilhantes das sociedades humanas, com o seu convencionalismo exterior constitui um problema ao normal devenvolvimento do ser. Esse princípio estruturante, o qual não se adquire sem sofrimento, frustração e dor, chamou-lhe Freud o "princípio da realidade", a partir do qual o ser é arrancado ao idílio do conforto materno, da sua autonomia e independência para sentir a força constringente da macro-estrutura social. Kardec acentua este problema, circunscrevendo-o com actual oportunidade: "... a educação moral deficiente do homem, as suas leis, a organização social, tudo concorre para o seu egoísmo".

As leis humanas, a sua severidade penal que pune o mal praticado mas não atinge a raiz, são bem o sintoma das deficiências naturais de uma civilização que não soube ainda encontrar os meios eficazes para combater as suas chagas morais. Para Kardec, e na sua linha, para todos os que reflectem e procuram solução para o mal-estar na civilização, só a "educação pode reformar os homens que assim não terão mais necessidade de leis tão rigorosas". O ideal kantiano (Imannuel Kant, filósofo alemão) da lei moral na consciência como tribunal supremo e imperativo regulador da acção humana faz aqui todo o sentido. Mas qual é o tipo de educação que o Espiritismo preconiza? "... a educação não livresca, mas a educação moral que consiste em formar carácteres (685a)". O carácter do homem, o mesmo a quem Kant concedia importância extrema, é o centro da reflexão da filosofia espírita da educação. Como Kant, Kardec procurou demonstrar que uma moral que não disciplina o carácter, corrigindo as más inclinações e cultivando a solicitude, a bondade e o espírito de justiça, assente em princípios persuasivos de uma coerência e racionalidade a toda a prova, não é uma moral adequada mas impositiva e destinada ao fracasso.

Para Kant, toda a ação moral praticada não espontaneamente, com a intenção de provocar alguma satisfação no espírito de quem a pratica, ainda não é uma acção moral genuína, porém os espíritos superiores, em resposta a Kardec (897) esclarecem: "não é sinal de inferioridade (...) emendar-se, vencer as paixões, corrigir o carácter, visando aproximar-se dos bons espíritos". O ideal de uma moral autêntica, que não se sabe como tal, é um ideal que Kant deveria reservar aos espíritos puros, não ao homem.

Até aqui, algo que Kardec já fazia sentir no seu tempo (Cf. comentário à questão 685a), a ciência económica quis equilibrar as deficiências da civilização actual apenas por factores exteriores de ordem económica, procurando estabelecer uma relação de equilíbrio entre o produto e o consumo; entretanto, as filosofias economicistas não fizeram mais do que acentuar as carências sociais da civilização actual; a euforia do "produto" gerou as economias de consumo, a estas seguiu-se a procura desenfreada do "lucro" com os sucessivos atropelos aos direitos fundamentais da pessoa humana. O tecnocentrismo modificou o conceito de educação, procurando apenas formar os "especialistas" para tarefas concretas na grande engrenagem produtiva - o resultado está à vista: o homem mais infeliz, menos moralizado, menos capaz de encontrar espaço para a sua criatividade vê-se subordinado a objectivos vivenciais que não são escolhidos por si e, quando tem essa possibilidade, é arrastado para o que lhe pode proporcionar lucro fácil, uma vida confortável, todavia, vazia... Desejar mais do que se pode ou deve ter (Cf. L.E. 862), inaptidão para carreiras abraçadas (Cf. «O L. E.» 928.a) são alguns dos reveses acompanhados de frustração e suicídio que uma educação correcta podia evitar.

Se queremos de facto dar alguma credibilidade aos esforços que cada um pode fazer para dominar as suas más inclinações, modifiquemos o nosso comportamento, reformemos as nossas instituições. É preciso lembrar que "É o contacto que o homem experimenta do egoísmo dos outros que o torna geralmente egoísta, porque sente a necessidade de se pôr na defensiva. Vendo que os outros pensam em si mesmos e não nele, é levado a ocupar-se de si mesmo mais que dos outros. (Cf. 917)".

Para Kardec a educação é a "arte que permitirá ultrapassar a desordem e a imprevidência (...) o ponto de partida, o elemento real do bem-estar, a garantia da segurança para todos (Cf. comentário à questão 685a)". A Educação Espírita, educação fundada na compreensão das leis que regem todas as coisas no Universo, dá-nos a imagem real do estado futuro do homem e é o garante da erradicação do egoísmo da face da Terra, se bem vivida, bem entendido, compreendida e praticada.

Francisco Xavier de Almeida Marques

*Licenciado em Filosofia


Anterior Próxima


Literatura e LeituraLista de EscritoresFilósofosHistória da FilosofiaHistória da Literatura ☼ Fonte: Email recebido de projeto_espirita@grupos.com.br